Os
estudiosos do tema cultural relacionam mais de 160 definições antropológicas de
cultura.
O
importante, nesta perspectiva antropológica de avaliação da questão cultural, é
a ênfase necessária que se deve dar à inexistência de critérios de valoração
das culturas e aos aspectos ou significados amplos que o termo deve assumir.
Nas
palavras de MARCONI e PRESSOTO,
“Os antropólogos não
empregam os termos culto ou inculto,
de uso popular, nem fazem juízo de valor sobre esta ou aquela cultura, pois não
consideram uma superior à outra. Elas apenas são diferentes em nível de
tecnologia ou integração de seus elementos. Todas as sociedades – rurais ou
urbanas, simples ou complexas – possuem cultura. Não há indivíduo humano
desprovido de cultura, exceto o recém-nascido e o homo ferus; um, porque
ainda não sofreu o processo de endoculturação, e o outro, porque foi privado do
convívio humano”[1].
Não
há, desse modo, uma cultura superior a outra.
Todas
elas, sem exceção, devem ser compreendidas em suas diferenças.
Tal
postura, como é perceptível, nos permite construir significado mais amplo para
o termo e, com isso, podemos afirmar, como também o fazem as autoras citadas,
que ela “engloba os modos comuns e aprendidos da vida, transmitidos pelos
indivíduos e grupos, em sociedade”[2].
Antes
de apresentar uma síntese do conceito de cultura, MARCONI e PRESSOTO
transcrevem conceitos de alguns antropólogos. Vale a pena, para os fins que
buscamos com este trabalho, reproduzir esses conceitos:
“Alguns conceitos, para
melhor esclarecimento, serão apresentados aqui, obedecendo a uma ordem
cronológica e com as diferentes abordagens.
Edward B. Tylor
(1871) foi o primeiro a formular um conceito de cultura, em sua obra Cultura primitiva. Ele propôs: ‘Cultura...
é aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral,
a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem
como membro da sociedade’(in Khan, 1975:29). O conceito de Tylor, que
engloba todas as coisas e acontecimentos relativos ao homem, predominou no
campo da antropologia durante várias décadas[3].
Para Ralph Linton
(1916), a cultura de qualquer sociedade ‘consiste na soma total de idéias,
reações emocionais condicionadas a padrões de comportamento habitual que seus
membros adquiriram por meio da instrução ou imitação e de que todos, em maior
ou menor grau, participam’ (1965:316). Esse autor atribui dois sentidos ao
termo cultura: um, geral,
significando ‘a herança social total da humanidade’; outro, específico,
referindo-se a ‘uma determinada variante da herança social’ (96).
Franz Boas (1938)
define cultura como ‘a totalidade das reações e atividades mentais e físicas
que caracterizam o comportamento dos indivíduos que compõem um grupo social...’
(1964:166).
Malinowski (1944),
em Uma teoria científica
da cultura, conceitua cultura como ‘o todo global consistente de implementos
e bens de consumo, de cartas constitucionais para os vários agrupamentos
sociais, de idéias e ofícios humanos, de crenças e costumes’ (1962:43).
O mais breve dos
conceitos foi formulado por Herkovits (1948), embora esse não seja o único: ‘a
parte do ambiente feita pelo homem’ (1963:31).
Kroeber e Kluckhohn
(1952), em Culture: a
criticalreviewofconceptsanddefinitions, referem-se à cultura como ‘uma
abstração do comportamento concreto, mas em si própria não é comportamento’
(1952:19).
Beals e Hoijer
(1953) também são partidários da cultura como abstração. Afirmam eles: ‘a
cultura é uma abstração do comportamento e não deve ser confundida com os atos
do comportamento ou com os artefatos materiais, tais como ferramentas,
recipientes, obras de arte e demais instrumentos que o homem fabrica e utiliza’
(1069:265-ss).
Para Felix M.
Keesing (1958), a cultura é ‘comportamento cultivado, ou seja, a totalidade da
experiência adquirida e acumulada pelo homem e transmitida socialmente, ou
ainda, o comportamento adquirido por aprendizado social’ (1961:49).
Leslie A. White
(1959), em O conceito de cultura
(in Kahn, 1975:129 ss), faz diferença entre comportamento e cultura. Para
ele, é:
-Comportamento: ‘quando coisas e
acontecimentos dependentes de simbolização são considerados e interpretados
face à sua relação com organismos humanos, isto é, em um contexto somático’ –
relativo ao organismo humano;
-Cultura: ‘quando coisas e
acontecimentos dependentes de simbolização são considerados e interpretados num
contexto extra-somático, isto é, face à relação que têm entre si, ao invés de
com os organismos humanos’ – independente do organismo humano.
Desta forma,
comportamento pertence ao campo da Psicologia e cultura ao campo da
Antropologia.
Para White, esse
conceito ‘livra a Antropologia cultural das abstrações intangíveis,
imperceptíveis e ontologicamente irreais e proporciona-lhe uma disciplina
verdadeira, sólida e observável’.
G. M. Foster (1962)
descreve a cultura como ‘a forma comum e aprendida da vida, compartilhada pelos
membros da uma sociedade, constante da totalidade dos instrumentos, técnicas,
instituições, atitudes, crenças, motivações e sistemas de valores conhecidos
pelo grupo’ (1964:21).
Mais recentemente, Clifford
Geertz (1973) propõe: ‘a cultura deve ser vista como um conjunto de mecanismos
de controle – planos, receitas, regras, instituições – para governar o
comportamento’. Para ele, ‘mecanismos de controle’ consistem naquilo que G. H.
Meed e outros chamaram de símbolos significantes, ou seja, ‘palavras, gestos,
desenhos, sons musicais, objetos ou qualquer coisa que seja usada para impor um
significado à experiência’ (1967:37). Esses símbolos, correntes na sociedade e
transmitidos aos indivíduos – que fazem uso de alguns deles, enquanto vivem –‘permanecem
em circulação’ mesmo após a morte dessas pessoas”[4].
A
partir dessas concepções, as duas autoras, antes de apresentar suas visões do
tema, apresentam uma síntese dos ‘conceitos’:
“Pelo visto, o conceito de
cultura varia no tempo, no espaço e em sua essência.Tylor, Linton, Boas e
Malinowski consideram a cultura como idéias. Para Kroeber e Kluckhohn, Beals e
Hoijer, ela consiste em abstrações do comportamento. Keesing e Foster a definem
como comportamento aprendido. Leslie A. White apresenta outra abordagem: a
cultura deve ser vista não como comportamento, mas em si mesma, ou seja, fora
do organismo humano. Ele, Foster e outros englobam no conceito de cultura os
elementos materiais e não materiais da cultura. A colocação de Geertz difere
das anteriores, na medida em que propõe a cultura como um ‘mecanismo de
controle’ do comportamento.
Essas colocações
divergentes, ao longo do tempo, permitem apreender a cultura como um todo, sob
vários enfoques”[5].
Eis,
finalmente, a definição apresentada por MARCONI e PRESSOTO:
“A cultura, portanto, pode
ser analisada, ao mesmo tempo, sob vários enfoques: idéias (conhecimento e
filosofia); crenças(religião e superstição); valores (ideologia e moral);
normas (costumes e leis); atitudes (preconceito e respeito ao próximo); padrões
de conduta (monogamia, tabu); abstração do comportamento (símbolos e
compromissos); instituições (família e sistemas econômicos); técnica (artes e
habilidades); e artefatos (machado de pedra, telefone).
Os artefatos
decorrem da técnica, mas a sua utilização é condicionada pela abstração do
comportamento. As instituições ordenam os padrões de conduta, que decorrem de
atitudes condicionadas em normas e baseadas em valores determinados tanto pelas
crenças quanto pelas idéias”[6].
Outra
forma de ‘sintetizar’ a construção do conceito de cultura é apresentada por
LARAIA, reproduzindo o trabalho de Roger Keesing, que “classifica as tentativas
modernas de obter uma precisão conceitual” de cultura entre as
teorias que a consideram como “um sistema adaptativo” e as “teorias
idealistas de cultura”.
A primeira teria sido
a teoria difundida pelos “neo-evolucionistas como Leslie White”
e “reformulada criativamente por
Sahlins, Harris, Carneiro, Rapaport, Vayda e outros”, que segundo
LARAIA, “apesar de fortes divergências que apresentam entre si, concordam que”:
“1. ‘Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente
transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus
embasamentos biológicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e
modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento
social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por
diante.’
2. ‘Mudança
cultural é primariamente um processo de adaptação equivalente à seleção
natural.’ (‘O homem é um animal e, como todos animais, deve manter uma relação
adaptativa com o meio circundante para sobreviver. Embora ele consiga esta
adaptação através da cultura, o processo é dirigido pelas mesmas regras de
seleção natural que governam a adaptação biológica.’ (B. Meggers, ....).
3. ‘A tecnologia, a
economia de subsistência e os elementos da organização social diretamente
ligada à produção constituem o domínio mais adaptativo da cultura. É neste
domínio que usualmente começam as mudanças adaptativas que depois se ramificam.
Existem, entretanto, divergências sobre como opera este processo. Estas
divergências podem ser notadas nas posições do materialismo cultural,
desenvolvido por Marvin Harris, na dialética social dos marxistas, no
evolucionismo cultural de Elman Service e entre os ecologistas culturais, como
Steward.’
4. ‘Os componentes
ideológicos dos sistemas culturais podem ter conseqüências adaptativas no
controle da população, da subsistência, da manutenção do ecossistema etc.’”[7].
As
teorias “idealistas de cultura” se
subdividiriam em “três diferentes
abordagens”, que, segundo LARAIA, podem ser sintetizadas deste modo:
“A primeira delas é a dos que consideram cultura como sistema
cognitivo, produto dos chamados ‘novos etnógrafos’.[envolvendo] estudo dos sistemas de classificação de folk,
isto é, a análise dos modelos construídos pelos membros da comunidade a
respeito de seu próprio universo. Assim, para W. Goodenough, cultura é um
sistema de conhecimento: ‘consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou
acreditar para operar de maneira aceitável dentro de sua sociedade’ (...).
A segunda abordagem
é aquela que considera cultura como sistemas estruturais, ou seja, a
perspectiva desenvolvida por Claude Lévi-Strauss, ‘que define cultura como um
sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente humana. O seu trabalho
tem sido o de descobrir na estrutura dos domínios culturais – mito, arte,
parentesco e linguagem – os princípios da mente que geram essas elaborações
culturais’.
(...) A última das
três abordagens, entre as teorias idealistas, é a que considera cultura como
sistemas simbólicos. Esta posição foi desenvolvida nos Estados Unidos
principalmente por dois antropólogos: (...) Clifford Geertz e David Schneider.
O primeiro deles busca uma definição de homem
baseada na definição de cultura. (...) Para isto, a cultura deve ser
considerada ‘não um complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de
mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções (que os técnicos
de computadores chamam de programa) para governar o comportamento. (...) para
Geertz, todos os homens são geneticamente aptos para receber um programa, e
este programa é o que chamamos de cultura. (...).
David Schneider tem
uma abordagem distinta, embora em muitos pontos semelhante à de Geertz. (...)
‘Cultura é um sistema de símbolos e significados. Compreende categorias ou
unidades e regras sobre relações e modos de comportamento. (...)”[8].
Se podemos analisar a cultura em todos esses “enfoques”, é
fácil compreender a importância da questão para o direito; afinal, ele se
preocupa ou trata de comportamentos, encontra-se ligado a “padrões de
conduta” ou a valores, crenças, ideias e atitudes, já que é seu propósito
controlar determinados comportamentos e assegurar que outros sejam observados.
Assim, a cultura é essencial para compreensão de uma dada sociedade e somente
através dela se pode estabelecer de modo efetivo e eficaz para que as leis
possam alcançar seu propósito de nortear a ação humana nessa mesma sociedade.
O
direito não pode, enfim, desconsiderar as questões culturais, até porque elas
delimitam o próprio sentido das regras jurídicas, na medida em que, resultante
de um processo dinâmico[9],
a cultura fornece o contexto necessário para a aplicação e a interpretação das
regras jurídicas.
Como
afirmam as autoras acima mencionadas: “Toda sociedade engloba um conjunto de
conhecimentos, crenças, valores e normas de comportamento que, embora seja uma
herança acumulada do passado, continuamente, a cada geração, vai-se
aperfeiçoando”[10].
Aí
se pode verificar a importância da precisão de uma definição ou construção de
um sentido jurídico de cultura.
É
esta definição que pretendemos aqui construir, de um modo necessariamente
coletivo, como coletiva é toda manifestação cultural.